









Colunista:
Floreando, por Milton Lodi 10/09/2010 - 12h17min
Vigor Híbrido
Léo Pires Pinto nasceu na Bahia, mas desde cedo radicou–se no Rio de Janeiro. Era grande e forte, foi remador do clube Vasco da Gama. Nas épocas turbulentas da política nacional, tinha conhecimentos com os então esquerdistas, apesar de ser alto funcionário da Radio Globo e também trabalhador como competente hipólogo no Haras Mondesir. Era um bom jornalista e estudioso. Trabalhava à tarde, e após o jantar lia e escrevia pelas madrugadas. Recebia farto material turfístico do exterior, o que lhe era muito útil para os necessários planejamentos pedigrísticos. Entre os seus muitos apreciados artigos, um deles, intitulado: “O vigor híbrido do cavalo brasileiro” foi publicado pela revista Puro Sangue Inglês, editada pela Associação Brasileira. A seguir, o referido texto:
O mais fascinante na criação do cavalo de corrida é que acreditamos com facilidade no que desejamos, embora a distância infinita entre sonho e a realidade, pontilhada de incertezas, venha a atrair–nos sempre para o desafio.
Possuímos uma jovem criação de 123 anos, que nas asas da sua modernidade voa ligeiramente para abandonar a timidez do passado, lançando–se ao futuro com pertinaz coragem e louvável determinação. Há sinais evidentes de um presente historicamente inédito, nesses 123 anos de existência do elevage brasileiro.
Finalmente despontou no cenário das grandes provas clássicas do Grupo I, alinhadas à importância da tríplice coroa Hipódromo Brasileiro, um classic winner cuja ascendência paterna liga–se a três gerações de reprodutores nacionais.
Essa interação gênica constituída de pai, avô e bisavô pela linha semental, todos nascidos e criados no país, é fato inusitado no pedigree de um cavalo de reputação Group 1 Stakes Winner. Sem temer os excessos do calor da exaltação pelo momento da descoberta, poderíamos afirmar que estamos diante de um resultado que é a síntese da conservação bem–sucedida do cavalo raçador nacional, em mais de um século de vida planificada. Esperava–se com justificada ansiedade por esse momento que acabou acontecendo, surpreendendo os observadores especializados ainda em estado de profundo alheamento quando se trata de sublimar as raízes mais legítimas do elevage brasileiro. Justificam–se os menos vigilantes, atribuindo que os acontecimentos turfísticos historicamente mais importantes apanham–nos quase sempre desprevenidos por falta de uma literatura de apoio capaz de traduzir na linguagem dos interesses nacionais, as manifestações do seu sucesso. Sendo a literatura especializada o produto variável e flutuante de cada turfe, está por isso sujeita às incidências técnicas que refletem e agitam a evolução do meio, revelando a cada instante novos acontecimentos que alteram o curso da história.
A vitória do potro Bold Máster, na última etapa da Tríplice Coroa de 1993, no Hipódromo Brasileiro (GP Jockey Club Brasileiro, Gr 1, em 3.00 metros) foi um registro especialíssimo, até então inédito nos anais da criação nacional.
Pela primeira vez um produto nacional, descendente de pai, avô e bisavô nascidos e criados no país, sagra–se vencedor de um grande prêmio de ressonância nacional, demonstrando classe, valentia, velocidade e resistência, atributos inerentes à constituição de um runner nivelado acima da média. Antes de Bold Master, dizia–se que o cavalo nacional tinha a sua heritabilidade comprometida para perpetuar linhagens. Quando se registrava uma exceção, o “fenômeno” não ultrapassava duas gerações. Foi o caso de Chubasco, vencedor do Derby Paulista de 1977. Filho e neto de reprodutores nacionais, morreu cedo, e a linha semental fundada por Formasterus, mantida através de Quixu e Don Bolinha, não pode ir além.
A história da expansão do lineamento paterno de Bold Máster, organizado, gerado e difundido na região serrana do Estado do Rio de Janeiro, começa em 1953, com o criador Júlio Cápua (Haras Vale da Boa Esperança), importando da França o cavalo Amphis (Pharis e Caronis, por Tourbillon) nascido no Haras de Fresnay–Le–Buffard, estabelecimento do legendário Marcel Boussac.
Tendo corrido na França e na Inglaterra, Amphis, aos 2 anos, foi o 2º no May Madden Stakes, em Newmarket, 3º no Solário Stakes, em Sandown e 3º no Criterium Stakes, em Newmarket. Aos 3 anos, venceu o Grand Prix de Vichy (Gr.3) em Vicky, chegando em 2º (photochart) no Prix Eugene Adam (Gr.2) em Saint–Cloud: 5º no Prix Noialles (Gr.2) em Longchamp e ainda aos 3 anos, descolocado no Prix de L’Arc de Triomphe (Gr.1) quando teve a incumbência de desempenhar o papel de sparring, em virtude da explosão de sua velocidade inicial, fruto de um temperamento voluntarioso, acionado por uma motricidade às vezes incontrolável. Aos 4 anos, Amphis obteve um placê na França, em seguida finalizou fora do placar, no Eclipse Stakes (Gr.1) em Sandown Park. A partir daí foi adquirido por Júlio Cápua, que se mostrava empolgado com o pedigree e sobretudo pelo estilo espontâneo de correr do filho de Pharis, aliás, bem sinalizado nas estreitas ligações parentais expostas no seu acervo hereditário.
LINHA MATERNA DE MARCEL BOUSSAC
Filho do invicto Pharis, que mais tarde seria autêntico chefe de raça, Amphis tinha por mãe outro exemplar típico da criação Boussac, devido à sua estrutura endogâmica. Trata–se da broodmare Caronis, inbred 2x3 sobre Durbar (Derby de Epsom de 1914) num entrelaçamento familiar bem engenhoso. Isto porque Heldifann, mãe de Caronis é irmã própria de Durban–mãe de Tourbillon, o qual se tornaria pai de Caronis.
Além de Amphis, Caronis produziu à reprodutora Damoiselle, que acasalada com Dejbel (filho de Tourbillon) gerou a Cardanil II (Prix d’Arenberg, Gr.3), exportado para a Argentina, onde serviu no tradicional Haras Ojo de Água, com apreciável desempenho.
Embora contasse com vários filhos ganhadores clássicos, Cardanil II teve maior brilho na produção de éguas–mães, sobressaindo como avô materno de notória qualidade.
Janus II (importado da Argentina pela Fazenda Mondesir) que é seu neto materno, foi ganhador do GP Brasil de 1976, pai de Cisplatine, líder de geração, heroína do GP São Paulo de 1986.
No Brasil, Amphis correu apenas uma vez, participando do GP São Paulo de 1954, vencido Quiproquó, escoltado pelo craque argentino El Aragonés. Ponteava a corrida até os derradeiros 500 metros, quando sofreu grave manqueira. Campanha de pista encerrada, ingressou na reprodução, cobrindo um reduzidíssimo número de éguas. Em 1956, ano em que nasceu Hyperio, seu filho mais famoso, Amphis veio a falecer, deixando uma só e exígua produção, não obstante o suficiente para marcar presença de um notável enraizador.
No Haras Vale da Boa Esperança, campo de criação meticulosamente organizado por Júlio Cápua, em Itaipava, região serrana do Rio, a 850 metros do nível do mar, clima privilegiado, nasceram e ali foram criados e treinados para as corridas Hyperio e seu filho Sabinus.
Hyperio, um dos melhores valores da geração liderada por Farwell, resultou do cruzamento do francês Amphis, com a égua inglesa Zabaglione (1945) filha de Nearco e Sundae, por Hyperion, importado da Inglaterra aos 9 anos, pelo criador Júlio Cápua. A combinação Pharis – Nearco, duas obras primas dos elevages Marcel Boussac (França) e Federico Tésio (Itália) provocou no pedigree de Hyperio um vigoroso inbreeding 3x3 sobre Pharos, um dos marcos mais célebres da criação inglesa de Lord Derby.
Cavalo de forte temperamento, nervoso, Hyperio não negou a raça. Dotado de extraordinária capacidade locomotora, foi imbatível aos 2 anos, perdendo a invencibilidade aos 3 anos, num acidente de carreira. Bateu dois recordes na pista de grama, nas distâncias 1.200 e 1.600 metros, nesta ao vencer o GP Outono (Gr.1) Primeira Prova da Tríplice Coroa do Hipódromo Brasileiro. Obteve 7 vitórias, inclusos GP Antonio Prado, GP Conde de Herzberg (Criterium de Potros), GP Outono, GP 16 de Julho, GP Oswaldo Aranha, os quais convertidos ao seleto sistema de graduação do turfe nacional, estariam classificados na categoria das Group Races. Ganhador genuinamente clássico dos 1.600 aos 2.400 metros.
Competindo em Cidade Jardim, colocou–se em 2º lugar para Farwell, no GP Internacional São Paulo de 1960, então disputado sob as características inovadoras do Derby Sul–Americano. Retornando à Gávea, foi 2º para Zuído no GP Cruzeiro do Sul (Derby) e 3º GP Distrito Federal (St.Leger) última etapa da Tríplice Coroa. Aos 4 anos retornou à Cidade Jardim para competir no GP São Paulo Internacional de 1961, finalizando em 3º para o craque argentino Arturo A e o nacional Empyreu.
Levado para reprodução no haras de origem, o destino que cedo demais ceifou a vida de Amphis, atirou–se com a mesma voracidade interceptando a brilhante trajetória de seu filho Hyperio, também prematuramente desaparecido. No entanto, da sua união com a égua francesa Truite (cast. 1952) importada em 1960, filha do sprinter Delirium e Troie, por Finglas, ficou germinada a fecunda semente de Sabinus, nascido em 1964. Cavalo de categoria internacional, com a jaqueta do criador, Sabinus fez campanha no Brasil (Gávea e Cidade Jardim), nos EUA e na França, marcando destacada presença.
Vitorioso no GP Cruzeiro do Sul, Gr.1 (Derby de 1968) somou outros triunfos no GP Presidente Vargas, GP Doutor Frontin, GP Conde de Herzberg (Criterium de Potros) etc, hoje, todas elas provas de grupo. Ganhou dos 1.00 aos 2.400 metros, obtendo inúmeras colocações de expressão internacional: 3º GP Brasil de 1969, 4º no GP São Paulo de 1968 e 1969. Em Laurel Park, especialmente convidado, chegou em 5º no Washington D.C. Internacional Stakes, Gr.1, competindo com os melhores runners da época.
Em Longchamp colocou–se em 2º,empatado com Grad, a meio corpo do ganhador Amarko, no Prix Du Ranelagh– 2.300 metros. Retornando ao Brasil, ingressou na reprodução em 1971, no Haras Vale da Boa Esperança, onde fez as primeiras coberturas.
Sabinus fazia a primeira estação de monta quando morre o seu criador.
No ano seguinte, exatamente a 27 de janeiro de 1972, todo o plantel do Haras Vale da Boa Esperança é colocado à venda, em leilão, encerrando–se um dos capítulos mais ricos do elevage fluminense (e porque não dizer, do Brasil), cuja história farta de emoção e beleza, haverá de realçar para os juízes da posteridade, com todos os clarões da inteligência, a obra pioneira de um mago, autêntico profeta solitário: Júlio Cápua.
DE CÁPUA A BOZANO: CONSOLIDAÇÃO GARANTIDA
Júlio Bozano, também criador no Estado do Rio de Janeiro, dando os primeiros gigantescos passos na edificação do Haras Santa Maria de Araras, que mais tarde se estenderia para as planuras de outros estados e países, adquire o reprodutor Sabinus, com o qual levanta as mais importantes provas clássicas do calendário nacional e se mantém nos primeiros postos das Estatísticas Gerais, entre todos os stallions em atividade no Brasil. Sabinus passa de sire of winners para broodmare sire, sem perder a pujança e o fulgor. Demonstrando precocidade é líder da Estatística de Pais de Produtos de 2 anos. Faz o mais difícil e até supera uma desconfiança que atormentava os tímidos, ainda receosos de que faltava ao cavalo nacional um avançado predomínio orgânico para o desempenho das funções de Sire os Sires.
Assim como seu pai Hyperio, Sabinus mostra–se capaz de produzir classic sires e Old Master, nascido na seção fluminense do Haras Santa Maria de Araras, é um exemplo alentador. Resultante da união de Sabinus com a égua nacional Ice Queen, filha do italiano Bonnard, em outra égua nacional, Oak Park, filha do argentino New Year, nasceu Old Master, brilhante Quádruplo Coroado do Hipódromo Brasileiro. Levado para seção paranaense do Haras Santa Maria de Araras, acasalado com a égua argentina Ivette Bay (importada em 1986, filha do americano Halpen Bay, ali nasceu em 1989, o potro Bold Master, ganhador da última prova da Tríplice Coroa de 1993– GP Jockey Club Brasileiro, Gr.1– defendendo a blusa do publicitário e fervoroso turfman Luiz Vicente Goulart Macedo.
Eis aí um lineamento paterno inédito e histórico, com quatro gerações de cavalos nacionais, todos ganhadores clássicos da seleta hierarquia do Grupo 1:
Hyperio (2.000 Guineas) – Sabinus (Derby) – Old Master (Quádruplo Coroado) – Bold Master (St. Leger).
Os três primeiros nascidos no Estado do Rio de Janeiro; o bisneto oriundo do Paraná. Dois criadores, Júlio Cápua e Júlio Bozano foram capazes de realizar esta proeza, legitimando até esta data, o mais extenso segmento paterno de natureza clássica da criação nacional.
Obviamente, há outras considerações genéticas que explicam com sutileza científica o “fenômeno” dessa viçosa perpetuação, sempre que se recorre à heterose no ambiente tropical, pela busca constante do vigor híbrido. E o produto nacional de boa categoria, com expressiva rusticidade, quando utilizado nas combinações com elementos de outros centros geográficos, selecionados, atua como mensageiro estimulador do efeito heterótico.
Não se trata de uma vã teoria, ou esquema lúdico para vender ilusões. É ciência que não se acaba com um ponto de interrogação.

[ Escolher outro colunista ]


|